(Foto: Reprodução)
Vítimas afirmam não ser tão fácil quanto parece denunciar agressões. Além de romper com dependência emocional, elas enfrentam instituições despreparadas e mecanismos falhos de proteção
A violência contra a mulher e a denúncia do agressor viraram o centro do debate das redes sociais no início desta semana, quando Pâmella Holanda, ex-companheira do DJ Ivis, publicou diversos vídeos em que o artista a agride fisicamente. No domingo (11/7), o Brasil conheceu o lado brutal do criador dos famosos hits ‘esquema preferido’ e ‘volta bebê, volta neném’, que atacava Pâmella até mesmo quando ela era puérpera
Em meio aos comentários de repúdio a Ivis e de apoio a Pâmella, foi possível observar um crescente julgamento sobre os motivos pelos quais ela ainda permaneceu com o homem após os ataques.
“E você ainda ia ficar com este traste que bate em você”, diz um comentário nas redes sociais. “Por que não denunciou antes?”, escreveu outra pessoa. Os questionamentos mostram a falta de conhecimento sobre o processo de adoecimento pelo qual a mulher vítima de violência passa. É o que pontua a psicóloga e fundadora do Projeto Renascer contra a violência doméstica, Neusa Maria Batista.
“Não é fácil denunciar. Os danos da violência são imensos. A primeira coisa que a mulher perde é a identidade. Ela deixa de ser quem ela é, morre subjetivamente e só vai vivendo. O agressor a afasta de amigos e família e a deixa sozinha; depois, a faz se sentir imprestável e indigna de amor. É aí que ele se apresenta como o único que pode ‘aguentá-la’”, descreve a especialista.
“Depois, os mecanismos de enfrentamento falham com as mulheres. Muitos não acolhem e não funcionam. Por isso, elas têm medo de denunciar”, acrescenta Neusa.
Suellen Rocha é prova viva disso. Independente financeiramente, com grau de ensino superior e comunicativa, ela se viu em um relacionamento abusivo que não conseguia romper. O ápice, que levou a advogada a buscar auxílio, foi quando o então namorado a manteve em cárcere privado e cometeu várias agressões e violências.
“O ciclo abusivo é muito pesado e difícil de romper. Ele me agredia verbalmente e fisicamente e eu era condicionada a perdoar depois, me pedia desculpas, chorava, pedia para perdoar e dizia que tava tudo bem terminar, mas queria amizade e depois ele já estava comigo de novo”, conta Suelen. O comportamento passivo-agressivo do ex-namorado, que conheceu em em 2018, a fazia se manter com ele, mesmo com as agressões.
Nos quase três anos de relacionamento, Suelen resistiu às crises de ciúme, agressões físicas e ataques contra a aparência física e a inteligência dela. “Ele dizia que não gostava de mulher preta, mas gostava de mim. Quando mexiam comigo na rua, ele ficava com raiva e dizia que eu estava me achando e que eu tinha que saber que eu não era metade do que eu achava”, lembra.
Advogada, Suellen tem o sonho de construir uma carreira na magistratura e ao compartilhar o desejo com o então namorado, foi desacreditada. “Ele disse que eu nunca ia passar, que tem jovens ricos que estudam integralmente e não passam, então não seria eu que iria conseguir”, diz. Aliás, a condição financeira de Suellen sempre era alvo de críticas e humilhações. Branco, 57 anos, e morador da região nobre e tradicional do Rio de Janeiro, o agressor afirmava que a carioca tinha “roupa e celular de pobre”.
Em meio aos ataques verbais, as violações físicas também ocorriam: tapas no rosto, tentativas de estrangulamento e puxões de cabelo se tornaram comuns. “E depois disso sempre voltava ao ciclo: ele chorava, pedia perdão, eu ficava mal, eu falava para nos distanciarmos, mas logo voltava”, conta.
Para Suellen, a dependência emocional é a maior barreira para que ela e outras mulheres se livrem de relacionamentos abusivos. “Mesmo não sendo algo bom, a mulher acaba sendo persuadida, manipulada e atribuído a ela a culpa dos problemas na relação. Outras também permanecem por dependência financeira do agressor”, diz
Ela afirma que o “olhar de simplicidade” das pessoas ao julgar uma mulher que demora sair do ciclo abusivo e de violências é “justamente por não ter relação emocional com o agressor”. A mulher se dedica e confia em uma relação que construiu se empenhando para ser feliz.
“Quem vai dar conta da cabeça dessa mulher ? E dos sentimentos dela ? O agressor tem habilidade para fazer a autoestima da mulher ficar baixa, de fazê-la acreditar que ninguém irá querê-la, que tá gorda ou feia e sempre desqualificando. Ela acaba internalizando tudo isso e acredita”, desabafa.
“A mulher também sofre com crenças conservadoras e cristãs de que a mulher tem que perdoar, ser submissa e lutar pelo relacionamento e com falta de apoio. Todas essas coisas pesam na decisão”, diz. Talvez tenha sido por este motivo que apenas um ato brutal de violência impulsionou a advogada a denunciar as agressões e pedir uma medida protetiva contra o namorado.
O fim do ciclo e o começo de outras violências: instituições falharam
O fim do relacionamento veio junto com um episódio de extrema violência. Após uma viagem da advogada para Arraial do Cabo, em fevereiro de 2021, o casal começou a ter brigas mais violentas. O motivo foi a desconfiança do agressor de que Suellen viajou com outro homem, que de acordo com ele supostamente teria “bancado” todos os gastos dela.
“Ele se sentiu traído, contrariado e ficou muito agressivo”, diz. Contudo, a viagem foi uma das fugas para distanciamento do agressor e para tentar ter um lazer e refletir sobre tudo que estava acontecendo. Toda a viagem e as despesas foram pagas por Suellen, que fez a viagem sozinha. “Depois da pandemia também percebi que ele ficou mais agressivo”, pontua.
Um mês intenso de brigas se passou e, em 22 de março de 2021, foi o primeiro contato do casal com uma instância policial. No meio de um conflito, no centro do Rio de Janeiro, o homem começou a bater em Suellen e a trancá-la no carro. Mesmo com pedidos para que ele a deixasse descer do veículo, o homem continuou a dirigir, descontrolado. Ao passar por uma viatura, Suellen conseguiu gritar socorro e o carro foi parado.
“Os policiais abordaram o carro e pediram pra eu sair e eu disse que estava presa. A policial colocou a arma na cabeça dele e pediu para ele abrir o carro”, lembra.
Dias depois, o homem fez investidas com promessas de uma nova relação, implorou por uma reconciliação e pediu que Suellen não falasse sobre as violências cometidas por ele. Um novo encontro ocorreu e novas violências foram cometidas, inclusive submeter a advogada a cárcere privado.
Depois do último encontro conturbado, Suellen ficou reclusa em casa, mudou a rotina, parou de falar com algumas pessoas, mudou de número de telefone e ficou sem coragem de compartilhar o que tinha ocorrido. Ficou traumatizada e apenas em 8 de abril conseguiu ir a uma delegacia denunciar o ocorrido. Mas a reação dos agentes que a atenderam não foi o esperado.
“Eles não queriam me ouvir, não pegaram meu depoimento e nem viram os áudios e mensagens violentas que ele me mandava. Disseram que eu ia ser ouvida em juízo e que não era necessário”, disse. A policial também não quis registrar as acusações com todos enquadramentos do tipos penais, feitas por Suellen. No entanto, de acordo com a advogada, a mesma delegacia que “negou o direito a depoimento”, registrou seis páginas de relatos feitos pelo agressor.
“Muitas mentiras ditas por ele, dizendo que não sabia que era advogada e difamação entre outras mentiras”, diz.
Suellen também procurou atendimento em hospital público e o atendimento foi negado. “Eles falaram que eu não fui no mesmo dia da agressão e me negaram atendimento”, diz.
Com isso, ao buscar efetividade de políticas públicas, já implementadas e voltadas para combate e violência contra mulher, passava por violências institucionais. O que resultou em uma reclamação na prefeitura do Rio de Janeiro para apuração de negativa injustificada de atendimento médico em Hospital Público.
“Apenas a medida protetiva me garantiu o direito de manter viva, o pedido foi deferido pela juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), Adriana Ramos de Melo. Extremamente envolvida com a causa e competente , ela concedeu a medida cautelar contra ele e que foi fundamental para ele respeitar o meu desejo de afastamento total ”, conta.
O processo corre em segredo de justiça e Suellen não revelou o número dos autos e nem o nome do agressor ao Correio.
“A juíza foi muito cautelosa e entendeu meu pedido, que é apenas sair do ciclo de violência, me manter viva e ter qualidade de vida”, pontua. Foi no TJRJ que ela foi finalmente ouvida pela primeira vez. Um psicólogo do órgão a atendeu, reconheceu : a violência de gênero; a dependência emocional; a depreciação da sua imagem e o relacionamento abusivo.
Logo depois, ela começou a ser atendida pelo Centro Especializado de Atendimento à Mulher (CEAM), local em que encontrou apoio da psicóloga Waleria Gonzalez e da assistente social Rose Pedreira, junto à diretora Rosângela Pereira. Ela afirma que a escuta especializada e as profissionais altamente qualificadas fizeram toda a diferença no processo de recuperação através da fala e de ressignificar tudo que viveu.
Para Suellen, a mulher que é vítima de violência doméstica e familiar “necessita de escuta especializada e da cura que também acontece através do processo de fala” e também de ” ressignificar “tudo que viveu e recuperar sua autoestima.
Depois da medida protetiva e da ação penal, Suellen espera por justiça, mas não somente contra o agressor, que finalmente parou de procurá-la. Ela também quer denunciar a falta de acolhimento e profissionalismo das instituições e a violência institucional que as mulheres sofrem.
“Eu decidi sair de um ciclo de violência no relacionamento amoroso, abusivo e tóxico e não sabia que ao mesmo tempo estava também decidindo passar por tantas outras violências (violências institucionais). É um teste de resistência, eu resisti a várias fases para obter uma coisa tão óbvia e tão clara. Onde estão todas as estruturas quando uma mulher precisa?”, questiona.
“Eu percebo que ainda está sendo tratada a violência contra a mulher com ampla divulgação de informações e de suposta conscientização da população. Mas na prática ainda é tratada como briga de marido e mulher e ninguém mete a colher”, completa.
A advogada afirma que proteger mulheres e políticas de enfrentamento a violência contra mulher é “a busca da punição de agressores, e não de homens”. “É lutar pelo direito de viver e viver sem violências. E a vida é o maior bem jurídico tutelado”, pontua.
“Se a denúncia fosse efetiva, eu denunciava, mas não é”, diz vítima
A experiência de Suellen com as instâncias policiais e judiciais é o motivo pelo qual Michelle* (nome fictício), 27 anos, não denunciou o agressor. “E nunca quero denunciar”, diz com firmeza.
A situação de Michelle é ainda mais delicada porque o agressor tem um motivo para continuar presente na vida dela: o filho dos dois, um garoto de sete meses. A desculpa de ver o bebê deixa a mulher com constante medo de que a qualquer hora ela possa sofrer uma nova violência.
“A última vez foi quando ele veio em casa, sem avisar, disse que queria ver o bebê. Eu estava sozinha. Ele entrou e começou a tentar me acariciar, me beijar. Eu resisti e ele começou a ficar agressivo. Eu me desvencilhei e liguei pra minha mãe, que chamou a polícia. Para fugir da viatura, ele pulou o muro e foi embora”, lembra. Agora, ela se tranca em casa para não correr o risco de ser pega de surpresa: portas, janelas e portão sempre com chaves e cadeados fechados.
Os dois se conheceram no fim de 2019 em um evento na cidade em que moram, no Distrito Federal, e começaram a namorar. Cinco meses depois, Michelle descobriu que estava grávida. Com a notícia, o homem a convidou para morar com ele. “Foi a partir daí que comecei a viver as agressões e conhecer o comportamento explosivo dele. Antes, eu não tinha percebido nada”, conta.
O ex-namorado começou a ser ausente, saía constantemente com amigos e sempre deixava Michelle trancada em casa. Ele passou a ser ríspido e agressivo com ela: agressões verbais eram feitas sempre que podia. “No mercado, na rua, em qualquer lugar. Ele reclamava que eu andava devagar, por conta da barriga, não gostava de perguntas e era grosso”, lembra.
A situação ficou pior quando ela teve que deixar o trabalho. Funcionária de uma lanchonete, ela não aguentou os odores dos alimentos e passou a sentir bastante enjoos, o que a levou a deixar o emprego no primeiro trimestre. A saída fez com que o agressor a humilhasse, falando que ela era preguiçosa.
“A primeira vez que ele me agrediu fisicamente foi em um domingo. Eu pedi para ele ficar em casa e ele me bateu”, lembra. Michelle diz que continuou no relacionamento por não querer voltar para a casa da mãe ainda gestante. Ela também diz que achava que o filho poderia mudar o comportamento do homem.
“A mulher tem na mente dela que vai mudar um cara que é pertubado e isso não existe, ninguém muda ninguém. Hoje eu entendo, a gente foi criada achando que vamos ajudar o homem, uma ideia de ser heroína mas isso não é real”, pontua.
As agressões continuaram ao longo dos meses. Ela sofreu várias quedas ainda grávida ao tentar fugir dele, sofreu empurrões e tapas. Em julho de 2020 foi a primeira vez que uma pessoa externa percebeu a violência. “Em uma noite eu estava muito cansada e no outro dia cedo tinha uma consulta de pré-natal, que ele inclusive não foi em nenhuma. Ele passou muito tempo querendo ter relação e eu não queria. Ele me bateu e me forçou a fazer”, conta.
No dia seguinte, a médica percebeu e encaminhou Michelle para a psicóloga do posto que ela se consultava. A profissional insistiu que ela denunciasse, mas ela não queria. “Mesmo depois disso eu continuei. Ele me culpava e eu acreditava. Falava que se eu fosse uma mulher melhor ele não precisava me bater, dizia que eu gostava de apanhar”, lembra.
No entanto, Michelle continuou a ter atendimento psicológico, o que a ajudou a organizar as emoções e foi o começo para entender o que vivia. A psicóloga auxiliava a mulher a dialogar com o homem. Em uma das consultas, em agosto de 2020, Michelle contou que ele ainda a deixava trancada e que ela tinha medo de precisar de algo ou passar mal e não ter ajuda. Ela foi orientada a conversar com ele.
“Na noite desse dia ele ia sair e eu pedi para não ficar trancada. Ele saiu e deixou aberto o portão. Quando voltou, ele me bateu, chutou minha barriga, cuspiu em mim e me expulsou de casa. Ligou para minha mãe me buscar dizendo que eu era louca e agressiva”, relata.
Ao buscá-la, a mãe de Michelle disse que a filha não precisava passar por aquilo e que ela deveria terminar o relacionamento. A partir desse dia, ela saiu de casa e decidiu terminar o relacionamento. Antes, porém, as duas foram ameaçadas pelo agressor.
“Ele disse para minha mãe me tirar de perto dele se não eu ia matá-la. Também falou que se eu o denunciasse, em qualquer lugar que ele estivesse, ele daria um jeito de eu ser morta”, conta. O ex-namorado de Michelle também confessou que já tinha sido denunciado pela Lei Maria da Penha pela própria mãe e que caso recebesse uma nova denúncia, seria preso. “Por isso, ele me ameaçou, na hora e depois, mandando áudios e mensagens”, diz.
Está em situação de violência doméstica ou conhece alguém? Acolha e denuncie!
Questionadas sobre quais conselhos dariam para quem ainda está no ciclo de violência, Suellen e Michelle são categóricas: busque ajuda.
“Peça ajuda, de psicólogos, de pessoas confiáveis e acredite que existe uma vida sem esse cara. Existe uma possibilidade de viver sem ele. Temos que fortalecer a nossa autoestima e procurar meios, mesmo que seja sem a pessoa perceber”, pontua Michelle.
Suellen afirma que pessoas que sofreram o que ela sofreu devem ter cuidado redobrado ao denunciar. “Lembre também de que o 180 sempre está disponível e que é possível registrar ocorrência e pedir uma medida protetiva pelo site da delegacia. Reúna provas para embasar a denúncia”, diz.
Onde pedir ajuda
Ouvidoria do MPDFT
Telefones: 0800 644 9500 ou 127, das 8h às 19h
Promotorias de Justiça
Centros Especializados de Atendimento à Mulher (CEAMs)
Unidades: Planaltina, Ceilândia e 102 Sul
Centros Especializados de Atenção às Pessoas em Situação de Violência (Cepavs)
Unidades: nos hospitais regionais ou policlínicas
Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência — Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República
Telefone: 180 (disque-denúncia)
Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam)
Entrequadra 204/205 Sul – Asa Sul
(61) 3207-6172
Disque 100 — Ministério dos Direitos Humanos
Telefone: 100
Detalhes das histórias das vítimas de violência foram ocultados para preservar a investigação e também a identidade de uma delas.
Com informações do site: TIMES BRASILIA
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